22 de jun. de 2007

Relembrando



por Luiz Rogério de Carvalho


Cabecinha branca, conversador, tranqüilo e sereno, com seus mais de setenta anos de idade, tinha atitudes e pensamentos de jovem, que contagiavam, e era exemplo para todos que o conheciam.

Era um homem franzino, mas com uma grande disposição para o trabalho, os mais rústicos e pesados, que poucos moços o acompanhavam nos árduos afazeres da vida campeira.

Chegando na casa de qualquer vizinho, onde estivessem executando algum trabalho, mesmo sem perguntar se precisavam de ajuda, logo tomava a iniciativa e, sem que se percebesse, já lá estava ele com as mãos na massa, e destacava-se pela eficiência.

Assim era "seu" Jany, pequeno proprietário rural que, além do trabalho na sua propriedade, cuidando de suas criações, que eram uma beleza, também prestava serviços para os fazendeiros da região.

Homem de confiança, e despachado, sempre muito procurado, tinha sua agenda sempre cheia.

Nos domingos e feriados, muitas vezes tive a satisfação de receber a visita daquele velho e saudoso amigo que, chegando sem alarde, na sua bonita e bem encilhada égua tordilha, apeava e ia logo dizendo que vinha para “um bom dedo de prosa”.

Contando suas histórias campeiras, sempre interessantes, na varanda de minha casa, no verão, ou à beira do fogão, no inverno, ao sabor do chimarrão, as horas passavam alegres e despercebidas.

Estimado por todos, na região, era conhecido também pelo fato de que não admitia falhar, nem consigo, nem com os outros.

Contam, seus conhecidos mais antigos que, certa vez, combinou com um fazendeiro da região, que este passaria na sua casa às cinco horas da manhã, para fazerem uma lida na fazenda.

Tendo ido dormir muito tarde, e cansado, quando o fazendeiro chegou, de madrugada, e buzinou na frente da casa, chamando, "seu" Jany acordou-se, assustado, pois tinha perdido a hora de levantar, coisa que nunca lhe tinha acontecido.

Quando o fazendeiro o chamou, ele, de pronto respondeu, lá do quintal: estou aqui "seu" Antônio. Estava com a enxada na mão, capinando, e só de cuecas.

Não sabia o fazendeiro, que ele pulara a janela, e simulava um trabalho, para não ser surpreendido ainda na cama, coisa que jamais lhe acontecera, e que o faria sentir-se ferido no seu orgulho de homem cumpridor de suas obrigações.

Aquele homem simples e trabalhador, bom e prestativo, que nunca se queixou de nenhuma doença, de repente sentiu que suas forças estavam faltando, seu trabalho já não rendia como antes, embora a vontade ainda fosse férrea.

A dor começou a maltratá-lo, a pele foi amarelando, e estava emagrecendo tanto, que teve de ser levado ao hospital, onde foi diagnosticado câncer no fígado, em estado bem avançado.

Fui visitá-lo, no Hospital Nossa Senhora dos Prazeres, em Lages, e ele, cheio de esperança, dizia que precisava voltar logo para o sítio, porque tinha as ovelhas para tosquiar, a roça de milho para colher, e os terneiros, recém nascidos, para cuidar.

Não viveu muito, pois, embora acostumado às árduas lutas da vida campeira, não conseguiu vencer a última batalha, contra a doença. Em pouco tempo o levamos para a sua última morada, no cemitério da Vigia.

Na lembrança de seus amigos, e de quem o conheceu, ainda continua vivo e alegre, contando suas longas e divertidas estórias e histórias, acontecidas nos campos da Coxilha Rica.


13 de jun. de 2007

Tributo à Memória de meu Pai



por Luiz Rogério de Carvalho

José Arruda de Carvalho, Zeca, como carinhosamente era chamado, foi um homem sempre preocupado com a humanidade, que viveu seu tempo como um verdadeiro cristão.
A caridade foi uma das principais preocupações em toda sua vida. Dividir o pão com seu semelhante constituía sua grande alegria, pois o sofrimento de quem sentia fome era, para ele, motivo de grande tristeza. Por isso, da porta de sua casa, jamais alguém voltou de mãos vazias.

Quando morou em Lages, ainda novo, muitas vezes recolheu, para dormir na sua “Alfaiataria Carvalho”, mendigos que estavam dormindo na rua, e expostos ao inclemente frio do inverno serrano; lembro-me, também, de uma ocasião, em Florianópolis, quando um desconhecido dizendo estar com sua filha doente, internada no Hospital Infantil, disse que não tinha onde dormir, por não poder pagar um dormitório. Meu pai, consternado com a situação aflitiva de seu semelhante, não teve dúvidas, o levou para dormir em seu apartamento, não se preocupando com o risco que poderia ter corrido, por hospedar um estranho.

A bondade, com que sempre tratou todos, crianças, jovens ou velhos, fez dele um homem que, mesmo discordando de opiniões contrárias às suas e, às vezes, de forma veemente, nunca abandonou a urbanidade em suas relações pessoais.
Generoso para todos e, extremamente amoroso com seus familiares e amigos, sempre foi um defensor intransigente dos oprimidos e tolerante com os fracos, nos quais sempre encontrava alguma qualidade para enaltecer.

Por toda as suas qualidades e virtudes, que o fizeram credor de amizade e simpatia em todos os lugares por onde passou, tenho a certeza de que sua alma encontra-se em algum lugar sagrado, onde habitam os espíritos iluminados.
Seu corpo material que, consternados, devolvemos à terra, certamente, reintegrado à natureza, também viverá, nos mares, nas praias, nas águas dos riachos e das cascatas, no cantar sonoro dos pássaros, no perfume das flores e no verde das florestas que, em vida, ele tanto amou e preservou, plantando e regando árvores, tantas, que alegre viu frutificar.

Da sua existência na terra, percorrida com trabalho e dificuldades, mas, também permeada de amor, esperança e alegria, ficou, como legado mais precioso, para seus filhos e amigos, a lembrança imorredoura e o exemplo de uma vida digna.


6 de jun. de 2007

Amigos Inseparáveis



por Luiz Rogério de Carvalho


Eram cinco amigos, inseparáveis. Volnei, o mais velho, o líder, aquele que sempre orientava os outros nas brincadeiras, e até nas molecagens que faziam na rua, nem sempre muito ortodoxas. Era o filho mais novo de uma família numerosa. O pai dele, “major” Otacílio, cartorário, homem sisudo, de poucas palavras, mas, de muito bom coração, e preocupado com o futuro do filho e de seus amigos, que ele sabia ser uma turminha da pesada, preocupante...

A casa do Volnei era o ponto de reunião da turma, e refúgio daquele que, durante a semana, por algum motivo estava, temporariamente, de bronca com seus pais.
Tinha também o Emir, o “turco gordo”, filho do seu Jorge da venda, e da dona Samira. Ela, sempre alegre e bonachona, nos convidava para saborear os saborosos quitutes da cozinha árabe que, como ninguém, sabia fazer. O Emir, grande gozador, era o algoz do seu irmão mais velho, que tocava violino e pensava ser um futuro “Paganini”. Altino, o italiano, estava sempre risonho, contando piadas picantes e fazendo planos para o futuro. Era filho do seu Otto e da dona Custódia. De seu Otto, a gente pouco sabia, pois, pouco estava em casa. Sabíamos que era contador de uma madeireira, de um parente, e mais nada. Já a mãe do Altino, a dona Custódia, sempre chamando a todos de meus filhos, era de uma grande doçura, igual à geléia de uva que fazia. Embora trabalhasse muito e, por causa de um antigo reumatismo, sentisse fortes dores nas mãos, estava sempre alegre e disposta.

Paulo e Rafael, filhos do alfaiate, eram dois meninos que muito cedo começaram a trabalhar, como jornaleiros, e agora faziam parte daquela divertida “turminha da pesada”, de estudantes gazeteiros que, aos domingos, depois de vender, na fila do cinema, suas velhas revistas “de quadrinhos”, invariavelmente, iam assistir ao seriado do Flash Gordon, no antigo Cine Carlos Gomes, que tinha o apelido de “Cine Poeira”.

Tudo corria bem com a turma, até o dia em que, tentado a brincar com o perigo, Volnei pegou o revólver do seu Otacílio e, com ele na cintura, convidou os outros amigos para um passeio no campo, nas proximidades da cidade. Depois de muito caminhar, sentados para descansar, à beira da estrada, Volnei, ingenuamente, brincando com o 38, sem perceber, fez disparar um tiro que, para acabar com a alegria da aventura, teve um triste destino. A bala atingiu a barriga do Altino, e atravessou o seu intestino, fazendo várias perfurações.

Desesperados com o fato de ver o amigo ferido, e sangrando, todos juntos, na primeira carona que apareceu, balançando aos pulos da velha camionete Chevrolet 46, levaram Altino para o hospital, onde chegaram suando de nervosos e de medo.
Depois de uma longa espera, a primeira informação foi de que o amigo estava sendo operado, e seu estado era crítico.

Foram dias de angústia e expectativa, já que a vida do amigo corria real perigo.
Os amigos, e também suas mães, em suas orações, pediam a salvação e o pleno restabelecimento de Altino. Suas preces foram ouvidas, e depois de muitos dias hospitalizado, o “italiano” apareceu, muito pálido, pois perdera muito sangue, mas, já em plena recuperação.

Foi grande a alegria de todos ao saberem que o amigo estava, finalmente, salvo.
O impacto que esse fato causou naquela turminha, sem dúvida foi um marco divisório em suas vidas. Talvez aquele período de espera, angustiante, e a torcida pela vida do companheiro, tenham servido para reflexão e para a tomada de um novo rumo.

Todos voltaram a interessar-se mais pelos estudos, e maior senso de responsabilidade instalou-se em cada um, fazendo com que, embora subsistisse a mesma amizade, ela tenha amadurecido.
Os anos passaram-se, e os amigos ficaram distantes, no tempo e no espaço.

Volnei foi servir no Batalhão de Suez, ficou por lá bastante tempo, quando voltou, não demorou muito em Lages, logo foi para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso superior.Ingressou na Varig, que parece ter sido seu primeiro e único emprego. Muito competente e dedicado, acabou promovido a gerente, em Los Angeles, onde encerrou a carreira, com merecida aposentadoria.

Não agüentando a saudade, voltou ao Brasil. Hoje, casado e feliz, mora no Rio de Janeiro, em Copacabana.

Altino, entre Blumenau e Itajaí, sempre idealista, e sempre interessado em atividades culturais e literárias, acabou abrindo uma livraria em Blumenau. Mais preocupado com a literatura que com o comércio, a “Livraria Don Quixote” teve vida curta. Foi para Itajaí, estudou direito e hoje é cartorário em Itapema, cidade praiana do litoral catarinense. Continua o mesmo italiano de cabelo espetado, simpático e amigo de todo o mundo, e quando duvidam das histórias de sua juventude, que alegremente conta aos amigos, abaixa a calça e mostra, na barriga, a cicatriz da operação, feita para consertar o estrago que uma bala 38 fez no seu intestino.

Emir, o alegre e gozador “turco gordo”, com toda a família, mudou-se para Curitiba, formou-se em engenharia, casou-se e continua morando na capital paranaense, onde dirige uma bem sucedida empresa de construção civil.

Paulo, depois de mudar-se para Blumenau, onde estudou e teve uma longa atuação como líder estudantil, para manter-se, trabalhou em várias empresas, terminando como propagandista de laboratório até mudar-se para Porto Alegre, onde se formou em Direito. Ingressou no serviço público e, hoje, também aposentado, advoga um pouco, levando uma vida tranqüila, pois os filhos já estão formados e encaminhados.

Rafael, cedendo aos encantos da primeira paixão, casou-se muito novo, ainda franguinho. Por isso, necessitando trabalhar para sustentar a família, interrompeu os estudos, e muito cedo deixou Lages e a turma, indo morar em Blumenau, onde só muito mais tarde voltou a estudar. Concluiu o curso de Direito, advogou durante algum tempo, ingressou no serviço público, e hoje está aposentado, morando em Florianópolis, onde contempla as belezas da ilha, reúne-se com os amigos, escreve algumas reminiscências, e curte os netos.

Antes de mudar-se para Florianópolis, Rafael, já aposentado, e morando no sítio, na região de Lages, num belo dia, chegando para almoçar no restaurante do Lages Hotel, ainda pensando nas compras que iria fazer, para atender às necessidades de sua gostosa e curta vida rural, eis que, na porta do hotel, foi surpreendido com a agradável presença do velho amigo Volnei, que não via há mais de 40 anos. Depois de um grande e afetuoso abraço, Volnei disse que estava ali porque tinha vindo do Rio de Janeiro, com um único objetivo: na noite anterior tinha promovido um reencontro festivo com os amigos, o que acontecera no melhor clube da cidade, e com traje à rigor. Durante a conversa, entre risos de alegria, Volnei contou da aflição da sua procura pelos amigos, e da tristeza de não ter encontrado dois da antiga “turminha da pesada”. Um deles era o Paulo, de quem, por mais que procurasse, não conseguira o endereço. O outro, era Rafael que, embora estando a poucos quilômetros dos amigos festeiros, morava numa região rural e de difícil comunicação.

Este encontro foi breve, pois Volnei esperava a condução que logo o levaria ao aeroporto, no seu retorno para o Rio de Janeiro, mas, também foi o tempo suficiente para, durante o almoço, recordar bons momentos, e marcar uma data para um novo reencontro e, desta vez, esperam contar com a sorte, para reunir os cinco amigos da antiga “turminha da pesada”.

5 de jun. de 2007

Em São Joaquim


por Luiz Rogério de Carvalho

Era lá pelo ano de 1946, nossos pais morando no sítio das “Três Pedrinhas” que, na época, ainda não tinha escola, Pedro e eu estudando em São Joaquim, morávamos na casa da vó Júlia, ali bem pertinho do Grupo Escolar Manoel Joaquim Pinto, onde estudávamos.

De manhãzinha, depois de chamados pela vó Júlia, que nos acordava bem cedo, era nossa obrigação colocar os pirulitos nos tabuleiros, pois a vó Júlia que levantara muito mais cedo já os tinha preparados. Estavam prontinhos para serem vendidos por nós, durante o recreio do colégio. Essa venda representava um complemento importante na renda de minha vó, viúva e com parcos recursos. Mulher de valor, que tendo ficado viúva aos vinte e oito anos, sozinha, conseguiu criar e educar seus seis filhos.

Pedro e eu tínhamos nosso tempo de recreio tomado pela tarefa de vender os gostosos pirulitos que vovó fazia. Por isso, pouco tempo nos sobrava para as brincadeiras, que eram representadas sempre pelos brinquedos da época. Jogo de bolinhas de vidro, bilboquê, pião, etc. Só depois de vendidos todos os docinhos de minha vó é que nós íamos brincar, aproveitando o restinho do tempo de recreio.

Como compensação, depois de feitos os deveres da escola, à tarde, podíamos brincar à vontade.

Nossa diversão preferida, especialmente no verão, era ir nadar no “pocinho” do seu Júlio Cantalice. Lá, passávamos boa parte da tarde, nadando e mergulhando nas águas claras do rio São Mateus.
Para alegria da garotada, que lotava o “pocinho” , bem próximo, havia um pomar de maçãs, de propriedade também do seu Júlio, onde a gente se divertia e se deliciava com as maçãs, que o velho cultivava, tudo entre risos e brincadeiras, até que o seu Júlio nos descobria, e assustados corríamos em disparada, fugindo do local, alguns ainda pelados, com as roupas na mão, e comendo as maçãs.

4 de jun. de 2007

A BOLA



por Luiz Rogério de Carvalho


Em São Joaquim, minha terra natal, moramos em muitos lugares, tantos, que nem todos tenho na lembrança. Alguns lugares, entretanto, foram mais marcantes e, ainda hoje, lembro muito bem das coisas que aconteciam na nossa infância de meninos pobres, moleques, alegres e felizes.

A casinha de tijolos aparentes, no matadouro, foi, com certeza, uma daquelas onde moramos, que deixou marcas mais profundas na minha lembrança, pois foi bem pertinho dali, num campinho onde jogávamos nossas peladas de futebol, que fui inaugurar a minha primeira bola, que ganhei num tão esperado natal.

Passada a festa natalina, no dia seguinte, faceiro e alegre, com a bola debaixo do braço, rumei para o campinho, no outro lado da rua. De tão contente, nem vi que ali estava o famoso nego Tito, filho do Zé Tereza, garotão bem maior que todos os outros, e muito malvado com os menores.

Muito orgulhoso com a minha bola, fui logo anunciando que foi meu presente de natal, e que todos estavam convidados para jogar, na sua inauguração.
Foi aí que apareceu o danado nego Tito. Chegou, prepotente e arrogante, pegou a bola, que era de borracha, e com um violento chute mandou direto a uma cerca de arame farpado.

Nem é preciso dizer que a bolinha, que chegara pulando de alegria, igual a mim, projetada com a enorme força do nego Tito, encontrando a primeira farpa aguda do arame, ali mesmo caiu, murcha e triste.
Triste, porque nem conseguiu ser a esperada alegria da molecada que, sem outra alternativa, voltou a jogar com a velha e surrada bola de meia.
Triste também foi a volta para casa, chorando a perda da minha primeira bola de futebol, de borracha, mas que bola linda.